A diabetes mellitus tipo 2 é uma doença que exige bastante do paciente em termos de autocuidado, com adesão a uma alimentação saudável (em geral, o maior desafio), atividade física, monitorização da glicemia, medicamentos, conhecimento sobre a doença e demanda do profissional, além dos aspectos clínicos de manejo, uma abordagem educativa, humanizada e inclusiva, para sucesso do tratamento.
Também por isso o que se observa são números alarmantes e crescentes da doença e suas complicações no país. Comparando resultados da Pesquisa Nacional de Saúde 2013 e 2019, por exemplo, o diagnóstico médico autorreferido de diabetes saltou de 6,2 para 7,7. Em muitos lugares, inclusive, a mortalidade prematura por diabetes é crescente.
Toda doença crônica traz consigo o desafio do cuidado continuado à pessoa com a condição. Então quando se combina, na mesma situação, uma necessidade de acompanhamento regular por anos e um grande volume de pessoas precisando disso, qualquer sistema de saúde enfrentará dificuldades para dar boas respostas ao problema.
Um estudo publicado na Revista Ciência e Saúde Coletiva de abril de 20221 comparou demanda e oferta de procedimentos relacionados à diabetes. Ainda que tenham sido utilizados dados da Pesquisa Nacional de Saúde de 2013, a comparação entre demanda e oferta ajuda a analisar a capacidade de resposta do sistema. Verificou-se que o procedimento de maior demanda foi a dosagem de hemoglobina glicada, enquanto a maior oferta foi de bioquímica básica, especialmente exame de urina e dosagem de glicose. Só esse fato já revela uma consequência para a qualidade do controle da doença, pois não é novidade que a hemoglobina glicada é superior à dosagem de glicose em jejum especialmente para acompanhamento da doença em pessoas já diagnosticadas, visto que reflete a variação glicêmica de três meses anteriores.
Avaliando a média nacional, os três procedimentos mais críticos na relação oferta/demanda são: microalbumina na urina, hemoglobina glicada e fundoscopia. Para esses procedimentos, cerca de 15% a 35% da demanda é atendida. Isso revela dificuldades no monitoramento das complicações da doença, como nefropatia, retinopatia diabética e cegueira e que é urgente ampliar e qualificar o acesso a apoio diagnóstico. No caso da hemoglobina glicada, por exemplo, a oferta foi mais baixa que a demanda no país inteiro, com pior cenário no Norte e no Nordeste, onde nem 10% da demanda é atendida.
Um outro aspecto importante é analisar a situação da estrutura das unidades básicas de saúde (UBS), visto que é neste ponto de atenção que deve ser identificada e tratada a condição na maioria dos casos. E a situação também não é boa.
Um estudo utilizando resultados dos dois primeiros ciclos do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)2 mostrou que 31% das unidades apresentavam organização adequada para atender a pessoa com diabetes, que se refere a um combo mínimo que reúne oferta de: grupo educativo para DCNTs + renovação de receita + resultados dos exames + registro no território + busca ativa + estratificação de risco. Já na entrevista com o usuário, apenas um terço respondeu que tiveram seus pés avaliados nos últimos 6 meses. Vejam, a maior parte das complicações relacionadas a diabetes requer apoio diagnóstico com acesso a exames laboratoriais, mas a avaliação do pé diabético não, ela é feita por exame clínico no ato do atendimento e muito pode ser detectado mesmo na ausência de monofilamentos para o teste de sensibilidade. Sem contar que evita uma consequência dramática que é a amputação de um pé.
De qualquer forma, todo o conjunto de ações são possíveis de serem realizadas pelas equipes da saúde da família, desde que elas tenham suporte – insumos e estrutura – além de espaços de educação permanente, apoio da gestão e equipes de matriciamento que atuem como retaguarda para os casos necessários.
A pergunta a se fazer é: a qualidade da assistência oferecida é capaz de influenciar o autocuidado da pessoa com diabetes? Parece que sim. Nas equipes com boa avaliação, as pessoas com diabetes apresentam melhor adesão à alimentação saudável, realizam monitorização da glicemia, tomam medicamentos e até o exame dos pés foi melhor nas equipes com organização de agenda. A disponibilidade de equipamentos, materiais, insumos e impressos na UBS também influenciaram positivamente no autocuidado por esse público, como mostra o estudo de Suplici e colaboradores4.
Então, tão importante quanto se perguntar “se esse pessoal se cuida” é preciso pensar o que é oferecido para esse pessoal se cuidar. Um esforço que demanda mudanças em toda a linha de cuidado à pessoa com diabetes e coloca em evidência que a atenção primária pode cumprir papel central no cuidado e no apoio ao autocuidado dos pacientes com diabetes, porém ela precisa de valorização e que os demais pontos de atenção trabalhem de forma integrada à APS.
Olivia Lucena de Medeiros. Nutricionista. Mestre em Saúde Coletiva. Especialista em Saúde da Família.
Analista Técnica de Políticas Sociais do Ministério da Saúde desde 2013, foi Coordenadora-Geral de Prevenção de Doenças Crônicas e Controle do Tabagismo. É mestre em Saúde Coletiva (UnB – 2018), cursou Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade (UFSCar – 2009) e graduação em Nutrição (UNESP – 2006). Na experiência municipal, atuou na atenção à saúde (nutricionista da atenção primária e atenção especializada) e na gestão municipal (coordenação de atenção básica de um município da região metropolitana de SP).
Texto publicado em 19 set de 2022.
Referências
1. Muzy, Jéssica et al. Oferta e demanda de procedimentos atribuíveis ao diabetes mellitus e suas complicações no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva [online]. 2022, v. 27, n. 04 [Acessado 14 Setembro 2022] , pp. 1653-1667. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.05612021>. Epub 22 Abr 2022. ISSN 1678-4561. https://doi.org/10.1590/1413-81232022274.05612021.
2. Neves, Rosália Garcia et al. Atenção à saúde de pessoas com diabetes e hipertensão no Brasil: estudo transversal do Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica, 2014. Epidemiologia e Serviços de Saúde [online]. 2021, v. 30, n. 3 [Acessado 14 Setembro 2022] , e2020419. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S1679-49742021000300015>. Epub 19 Jul 2021. ISSN 2237-9622. https://doi.org/10.1590/S1679-49742021000300015.
3. Lopes, Clarissa Galvão da Silva et al. Desigualdades macrorregionais na atenção primária ao Diabetes Mellitus: comparação dos três ciclos do PMAQ-AB. Saúde em Debate [online]. 2022, v. 46, n. 133 [Acessado 14 Setembro 2022] , pp. 376-391. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0103-1104202213309 https://doi.org/10.1590/0103-1104202213309I>. Epub 17 Jun 2022. ISSN 2358-2898. https://doi.org/10.1590/0103-1104202213309.
4. Suplici, Samara Eliane Rabelo et al. Self-care among people with Diabetes Mellitus and quality of care in Primary Health Care. Revista Brasileira de Enfermagem [online]. 2021, v. 74, n. 2 [Accessed 13 September 2022] , e20200351. Available from: <https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0351>. Epub 16 June 2021. ISSN 1984-0446. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2020-0351.