A atenção primária à saúde é a porta de entrada no sistema de saúde no Brasil. Na pandemia da covid-19, seu potencial para prevenção, vigilância e atendimento de casos leves poderia ter evitado a sobrecarga de hospitais e emergências.
A conclusão é de pesquisadores da UnB (Universidade de Brasília), do Fiocruz Minas (Instituto René Rachou) e da FGV EAESP (Escola de Administração de Empresas do Estado de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas) em artigo publicado nesta segunda (28) na “Revista Brasileira de Medicina da Família e Comunidade”.
Os autores analisaram documentos publicados durante o primeiro ano da pandemia, como recomendações do Ministério da Saúde e de órgãos governamentais como o Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde).
Também compuseram a análise notas técnicas publicadas por sociedades científicas como a SBMFC (Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade). O objetivo foi verificar os aportes técnicos para o trabalho na atenção primária à saúde, que compreende serviços como a Estratégia de Saúde da Família e procedimentos como vacinação e testagens.
A pesquisadora Michelle Fernandez, uma das autoras do artigo, explica que a atenção primária consegue chegar facilmente à população, pois tem capilaridade no território brasileiro e está presente em áreas de vulnerabilidade social.
“Isto dá à atenção primária à saúde capacidade de mapear e recomendar isolamento de casos suspeitos, e esse é um mecanismo muito eficaz de desaceleração do contágio. Porém, no caso da covid-19, não havia normativas do Ministério da Saúde indicando a atuação nesse sentido para frear o avanço naquele primeiro momento”, aponta.
Fernandez observa que outros entes, como estados e municípios, organizaram o enfrentamento à covid-19 diante da ausência de coordenação nacional. Mesmo passados quase três anos do início da pandemia, ainda é tempo para o MS atuar de forma mais assertiva em diversas frentes do combate à covid-19, sobretudo na vacinação, destaca a pesquisadora: “Já temos vacina para toda a população maior de seis meses e atualizadas para as novas cepas, mas o Ministério da Saúde ainda não comprou as vacinas com essa atualização”, destaca.
Conforme a autora, também é fundamental que a gestão pública atente para o bem-estar dos profissionais da atenção primária à saúde, que atuam em diversas frentes desde o início da pandemia. “Temos profissionais lidando com novos casos na triagem e cuidando de pacientes na covid longa, e boa parte dessa demanda chega pela atenção primária.
Também temos profissionais trabalhando ativamente na vacinação. Eles estão sobrecarregados, com saúde mental debilitada, e o atual governo não estabeleceu política para cuidado desses profissionais”, frisa Fernandez.
O estudo evidencia a importância da coordenação do Ministério da Saúde para a atuação bem-sucedida da atenção primária à saúde e de suas equipes em todo o Brasil. “Outro achado interessante é a participação de atores além dos estatais na ressignificação da política pública para a atenção primária à saúde”, completa Fernandez mencionando a contribuição de redes e entidades científicas no período analisado.
Matéria publicada no portal do UOL no endereço:
Artigo
A Atenção Primária à Saúde na pandemia da COVID-19: uma análise dos planos de resposta à crise sanitária no Brasil
Michelle Fernandez, Luisa da Matta Machado Fernandes, Adriano Massuda
Artigo publicado em: https://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/3336/1774
Conclusão do artigo:
A estratégia de combate à pandemia do Brasil, na perspectiva da coordenação do MS, falhou ao subestimar o papel da APS. Mesmo diante das recomendações de diversas entidades nacionais e internacionais sobre a necessidade de foco na APS para o atendimento dos casos leves e a contenção da pandemia nos territórios, muito pouco foi feito; as orientações apresentadas foram fragmentadas, sem pactuação e de forma descoordenada.
A análise documental mostra que pouco do que foi proposto pelo MS chegou a ser efetivamente implementado pelos municípios, potencialmente por questões relacionadas à falta de recursos financeiros, de orientação adequada, de recursos humanos, de acesso a insumos e de treinamento de forma coordenada.
Se providas de recurso, as equipes de saúde da família poderiam ter feito a diferença na velocidade do controle da pandemia e salvado milhões de vidas no país. Diante dessa situação, e entendendo que a pandemia ainda está em curso no Brasil, há a necessidade de retomar a centralidade da APS enquanto coordenadora do cuidado em nosso SUS, até para o enfrentamento da pandemia de COVID-19.
Para além do monitoramento da atual pandemia, será necessário garantir o acesso aos cuidados nos pós-pandemia, das condições crônicas represadas, das sequelas da COVID-19 e das questões de saúde mental causadas pelo isolamento social prolongado. Para que isso ocorra, o MS deve ocupar seu lugar de coordenação também nas ações da APS.