Algumas reflexões sobre Atenção Ambulatorial Especializada do SUS, por Flávia Henrique

Essas reflexões apontadas abaixo não são fruto de revisão de literatura, por isso nenhuma referência foi citada, nem tem a pretensão de ser referência para pesquisadores em geral, ela foi escrita para um blog que discute saúde com a pretensão única e exclusivamente de colocar luz num tema pouco lembrado e discutido no SUS que é a atenção ambulatorial especializada, com base na minha experiência de atuação como Chefe de departamento de atenção especializada do município de Florianópolis nos últimos 4 anos.

A atenção ambulatorial especializada (AAE) é um dos mais importantes gargalos da assistência à saúde no SUS. Aguardar por consultas e procedimentos de média complexidade é comum entre usuários do sistema e impacta sobremaneira os desfechos e resultados em saúde. Atuando como chefe da atenção ambulatorial especializada no período de 2019 a 2022, em meio ao período pandêmico e buscando alternativas para redução das filas de espera desenvolvi algumas reflexões sobre o setor:

Quanto ao financiamento:  

O financiamento da média complexidade precisa ser completamente reformulado. Algumas sugestões vão a seguir:

Desvinculado do financiamento da média do financiamento da alta complexidade, ficando claro ao gestor estadual e municipal o que ele recebe para produção de consultas e procedimentos de média complexidade.

Revisão completa da tabela SIGTAP com revisão dos procedimentos e do local de execução e pagamentos dos mesmos, possibilitando ao gestor novas formas de atuação e recepção de valores.

Revisão dos valores pagos na tabela SUS e do teto pago por procedimentos realizados na média complexidade com aumento do valor por consultas especializadas e procedimentos, ou mudança geral no formato de financiamento da média complexidade.

Incentivos específicos para a realização de AAE em policlínicas regionais/municipais, desvinculadas de hospitais, onde a AAE fica em segundo plano frente ao pagamento mais efetivo de serviços de alta complexidade.

Regulamentação do decreto 7508 especialmente no que tange a RENASES com definição das ações e procedimentos de média complexidade e responsabilização pelos mesmos.

Quanto a estrutura:

O governo federal deveria subsidiar a reformas dos antigos hospitais de pequeno porte (pouco efetivos na sua função hospitalar) transformando-os em policlínicas municipais/regionais garantindo que esses serviços possam oferecer consultas especializadas de qualidade, realizar procedimentos simples, pequenas cirurgias ambulatoriais (grandes lipomas, retalhos, retiradas de carcinomas de pele, vasectomias).

Para AAE que depende de profissionais especialistas, principalmente para boa vinculação e fixação de médicos, fundamental garantir a possibilidade de contratos de 10 horas semanais e/ou 20 horas semanais, que possam ser concentrados em um ou dois dias da semana pois são mais efetivos e interessantes ao profissional e ao gestor municipal que em caso de afastamento por diversos motivos pode remanejar mais facilmente a demanda do serviço para outros profissionais.  

As policlínicas municipais e regionais deveriam atuar em horário expandido, das 07 as 22 horas e pelo menos nos sábados, facilitando a vinculação de profissionais e pacientes.

Quanto ao processo de trabalho:

Na APS – prática de medicina centrada no usuário e com evidência, evitando exames e procedimentos solicitados de maneira desnecessária.

Reorganização do trabalho das equipes multiprofissionais (NASF) no sentido de atuar próximo as equipes especialmente em suas ações de assistência, com equilíbrio das ações de prevenção-promoção a saúde com as ações assistenciais diretas aos usuários.

Garantia de exames laboratoriais e de imagens mais solicitados e comuns disponíveis em tela para serem agendados já pelo profissional solicitante no momento da consulta ou na recepção da própria unidade após consulta, evitando agendamentos desnecessários e ampliação do absenteísmo.

Regulação eficiente com base em protocolos construídos coletivamente, comprometido com o usuário e disponível para fazer a ponte da APS e AAE.

Central de aviso e confirmação de consultas especializadas – medida que impacta diretamente a redução do absenteísmo e reduz o trabalho burocrático da APS onde os municípios fizeram a opção de deixar a cargo da APS essa função.

Para especialidades eminentemente clínicas como, pediatria, ginecologia, cardiologia, pneumologia, reumatologia, neurologia, endocrinologia, infectologia, psiquiatria, dermatologia, nefrologia entre outras, em que os pacientes se vinculam por longos períodos, eventualmente por toda a vida, ter baixa rotatividade de profissionais, ou seja, ter serviços próprios, de profissionais estáveis, em que protocolos e programas possam ser desenvolvidos ao longo do tempo e que os profissionais da APS possam trocar informações e compartilhar cuidado parece ser mais efetivo que contratualizações pontuais em que o prestador muda conforme edital lançado.

Melhor definição do papel da equipe de enfermagem na AAE – A equipe de enfermagem tem um importante papel em serviços ambulatoriais de média complexidade como apoio as especialidades como endocrinologia, em especial no atendimento do paciente diabético, como cirurgia vascular, nas orientações quanto ao uso de meias e no tratamento de feridas, na busca ativa e vínculo de pacientes que abandonam o tratamento em especial no HIV e outras doenças estigmatizadas e principalmente na gestão da clínica em equipes de saúde mental, onde o usuário precisa de apoio para fazer seu percurso terapêutico.

Teleconsultorias, quando realizados por teleconsultor bem treinado que produz respostas de qualidade, são efetivas para redução dos encaminhamentos e para educação continuada em serviço. Para atuar como teleconsultor precisa ser profissionais com perfil e que entendam de medicina baseada em evidências.

Fisioterapia, fonoterapia, acupuntura, terapias que atendam de forma generalista – pelas dificuldades de organização da agenda que demanda supervisão contínua, sendo profissional dependente, gerando alto índice de absenteísmo, serviços contratualizados melhoram o acesso e podem ter papel importante no atendimento de grande parte dos pacientes com problemas limitados e não graves, em que um pacote restrito de sessões será suficiente para garantir sua assistência.

Serviços de atendimento a crianças e adultos com dificuldade de aprendizagem, TDAH, Autismo entre outros – esses serviços que contam com terapeutas e que tratam crianças e adultos por longo período são mais efetivos quando próprios, pois a rotatividade e a falta de vínculo afetam diretamente a qualidade do atendimento desses pacientes.

Teledermatologia – ação em que profissionais da APS possam através de seus telefones celulares e protocolos definidos mandarem fotos das lesões e assim terem educação em serviço e regulação dos casos de forma mais eficiente o que reduz significativamente encaminhamento a dermatologistas.

Revisão periódicas de filas com grande tempo de espera reduzindo absenteísmo e garantindo acesso e regulação do cuidado.

Revisão sistemática de vagas destinadas a procedimentos dentro das especialidades como por exemplo na ginecologia que possui vagas para: colocação de DIU (quando não for possível colocar na APS), colposcopia, pré-natal de alto risco e ginecologia geral reduz perda primária de vagas e melhorando o aproveitamento da agenda dos especialistas.

Articulação com serviços de alta complexidade para encaminhamento correto e em tempo oportuno dos pacientes graves, porém não urgentes e para encaminhamento para procedimentos cirúrgicos eletivos quando necessário.

Integralidade é um dos mais importantes princípios da Constituição Federal de 1988, está presente na segunda diretriz do Art. 198, com a seguinte redação “Atendimento integral, com prioridade para atividades preventivas sem prejuízo dos serviços assistenciais”. Acredito que este é o momento político e organizacional de darmos esse importante passo no SUS. Pela formação do nosso sistema de saúde, ainda antes da constituição de 1988, em função das caixas de aposentadorias e pensões e depois do INAMPs,  tivemos a formação de uma extensa rede hospitalar, inclusive em cidades de médio e pequeno porte, por outro lado com a organização do SUS, após a constituição, houve um importante e eficiente investimento na atenção primária em saúde, organizando uma outra rede extensa de serviços de saúde que hoje conta com mais de 40 mil unidades básicas espalhadas por todo o país. No meu estender nosso grande vazio assistencial, de políticas de saúde e de produção de conhecimentos é a média complexidade e sua necessária rede de ligação com os serviços de APS e hospitalares. Avançando nesses serviços poderemos enfim além de garantir o primeiro acesso e cuidado, garantir integralidade para a nossa população.

Flávia Henrique. Doutora em Saúde Pública pela ENSP – FIOCRUZ. Coordenadora da Atenção Especializada do município de Florianópolis e professora de clínica médica da Universidade Federal de Santa Catarina.

Por

Autoria Externa
São artigos sobre a APS publicados em outros meios de comunicação.

Compartilhe

Você tem uma sugestão de pauta, material, artigo de opinião ou eventos para divulgarmos?

Envie para: