A Atenção Primária do Sistema Único de Saúde, em 6 pontos

Serviço favorece prevenção, redução de desigualdades e atendimento às populações mais vulneráveisSe há um mantra na comunidade da saúde pública é o da importância de se promover e fortalecer a APS (Atenção Primária à Saúde). O amplo consenso em torno da sua capacidade de promover a saúde e reduzir desigualdades vem, no entanto, sendo posto à prova à medida em que ela se expande e se evidenciam limites quanto à sua efetividade e eficiência. A seguir exploramos este debate e fazemos sugestões que podem contribuir para o aperfeiçoamento da APS no SUS (Sistema Único de Saúde).

1. O que é a Atenção Primária à Saúde?

A APS é considerada a porta de entrada do cidadão no Sistema de Saúde, o SUS no caso dos brasileiros. Na vertente pública do SUS a porta de entrada é a Unidade Básica de Saúde, um equipamento público de baixa complexidade. Existem 44 mil UBSs (Unidades Básicas de Saúde) distribuídas pelos 5.570 municípios, cobrindo 76,08% da população (Mendes et al. 2018).

A expansão da APS esteve ancorada na ESF (Estratégia da Saúde da Família) operacionalizada por equipes multiprofissionais sediadas nas UBSs. Estas equipes são formadas por médicos, enfermeiros, agentes comunitários, dentistas, psicólogos e outros profissionais da saúde que atuam com ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação e reabilitação de doenças e agravos frequentes. A ESF não apenas acolhe os usuários que a procuram na UBS como, também, vai buscá-los ativamente na comunidade onde vivem. A expectativa é que a APS atenda até 80% dos problemas de saúde da população. Em revisão de literatura sobre o impacto da atenção primária Shy (2012) aponta que a partir de 12 meses de tratamento com modelos centrados na atenção primária como, por exemplo, a ESF, podem se verificar resultados positivos e consistentes nos indicadores de saúde da população tratada (Coelho e Dias 2018). Em termos de fluxos dentro do SUS, a APS deve, quando necessário, referir os usuários para os serviços de MAC (média e alta complexidade).

2. O que se sabe sobre a contribuição da Atenção Primária para a promoção da saúde e a redução das desigualdades no SUS?

A implementação da ESF em áreas onde residem populações socialmente vulneráveis, tais como municípios rurais distantes e periferias urbanas pobres e violentas, facilitou o acesso dessas populações ao sistema de saúde. Vários estudos têm apontado a contribuição da ESF para a melhora dos indicadores de acesso e de saúde da população e a redução das desigualdades nestes indicadores entre grupos populacionais (Coelho et al 2019, Andrade et al 2015).

O Ministério da Saúde mostrou que, entre 1998 e 2005, apresentaram tendência significativa de declínio para o Brasil e para todos os estratos de coberturas da ESF, sendo a tendência mais intensa nos estratos de cobertura mais elevada da ESF, indicadores como: 1) a proporção de óbitos em menores de um ano de idade por causas mal definidas, 2) a proporção de nascidos vivos de mães sem acesso a consulta de pré-natal, 3) a proporção de não vacinados pela tetravalente em menores de um ano de idade, bem como a taxa de internações por insuficiência cardíaca congestiva na população de 40 anos ou mais (Ministério da Saúde 2008). Quanto à redução das desigualdades em saúde entre grupos populacionais, sabe-se que, historicamente, negros e mestiços utilizavam menos a rede de equipamentos de saúde e apresentam maiores taxas de abandono de tratamento de saúde. A expansão da ESF contribuiu para amenizar esse quadro. Nesse sentido, Hone et al (2017) mostraram que a ampliação da ESF beneficiou indiretamente municípios com maior proporção de população negra. Entre 2003 e 2009, a expansão de cobertura da ESF foi quase duas vezes maior nos municípios com proporção de 74% ou mais de população negra do que no quartil com proporção de menos de 44% de população negra o que, segundo Hone et al (2017), teria contribuído para reduzir as desigualdades raciais nos índices de mortalidade por causas sensíveis à APS, principalmente nas mortes associadas a doenças infeciosas, deficiências nutricionais, anemia, diabetes e doenças cardiovasculares. Com isso, enquanto no período a redução da mortalidade entre brancos foi de 6,8%, ela foi de 15,4% entre os negros.

3. O que sabe sobre os gargalos da APS?

Uma APS robusta foi identificada como uma das causas relevantes para explicar variações positivas no desempenho dos sistemas de saúde no enfrentamento da covid-19. No Brasil, com algumas poucas exceções, nos primeiros estágios da pandemia esta rede foi praticamente esquecida. Faltaram orientação, EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), testes e, ainda, integração com os serviços mais complexos. Com o passar do tempo, parte da rede se reorganizou, passando a desempenhar um papel mais ativo na vigilância em saúde e no cuidado dos casos confirmados e suspeitos, tendo, porém, sido registrada diminuição significativa na oferta de consultas para usuários portadores de doenças crônicas (Bousquat et al 2021; SindHosp e Cebrap 2022).

Esse quadro reforça achados anteriores que apontaram para forte heterogeneidade dos serviços de APS e presença marcante de ineficiências, incluindo-se aí deseconomias de escala e baixa resolutividade dos serviços. Estudos de itinerários terapêuticos revelam uma APS de baixa efetividade, que em muitos casos não contempla, por exemplo, lavagem de orelha, suturas ou pequenos procedimentos como unha encravada (cantoplastia), ECG, coleta de exames ou papanicolau (MS 2020; Mello et al 2020). Com isso, pacientes que deveriam se beneficiar do cuidado generalista acabam em serviços mais complexos. Este quadro aparece de forma recorrente em serviços localizados em municípios muito pequenos e distantes, assim como em áreas vulneráveis e violentas de grandes centros urbanos. Nestas condições, são marcantes a situação de isolamento das equipes, as dificuldades para estreitar vínculos com serviços mais complexos, assim como para contratar, qualificar e reter profissionais. Hoje, diante de uma população que envelhece e desenvolve doenças crônicas, assim como de surtos epidêmicos recorrentes, que nos confrontam com velhas e novas doenças, que afetam desigualmente populações vulneráveis, fortalecer a APS representa um dos grandes desafios postos aos sistemas de saúde.

4. Como fortalecer a APS?

Fortalecer a APS, tanto no setor público quanto no privado, demandará ampliar sua resolutividade e capilaridade tanto para o interior das comunidades, quanto na direção dos serviços de maior complexidade. Mudanças no financiamento da APS do setor público e investimentos na informatização dos serviços e na saúde digital podem contribuir para este fortalecimento.

Neste sentido, mudanças no financiamento da APS deverão contribuir para a integração das redes de APS e MAC (Média e Alta Complexidade). Parte importante da APS é financiada por critério per capita de forma quase automática. Nos municípios menores, demandas mais complexas são atendidas fora do município – praticamente sem gastos adicionais para o município de origem e com ganhos adicionais para o prestador de serviços. Esta forma de financiamento pode estar contribuindo para que os gestores municipais e os prestadores de serviços mais complexos prestem pouca atenção à qualidade e resolutividade da APS. Neste contexto, uma gestão mais verticalizada dos serviços de APS e MAC poderá contribuir para um uso mais eficiente dos recursos e maior resolutividade dos serviços (Coelho et al 2020).

Investir na informatização e na telessaúde significará incorporar novas tecnologias digitais tanto na APS, quanto na MAC. A informatização com mobilização de inteligência artificial poderá contribuir para a interpretação de grandes repositórios de dados de saúde e a organização, gestão e regulação entre os vários níveis do sistema. Já a telessaúde permitirá otimizar a alocação dos profissionais da APS, ampliar o apoio cotidiano da MAC à APS e, também, capacitar a APS, contribuindo para sua resolutividade (SindHosp e Cebrap 2022). A tarefa, no entanto, não é simples. Basta lembrarmos as limitações que existem no acesso à internet de qualidade e aos equipamentos necessários para a realização de treinamentos, consultas e acompanhamentos online, tais como computador com câmera, microfone e conexão de internet, os quais, segundo levantamentos preliminares, estão presentes em apenas 27,5% das UBS (Bousquat et al 2021).

5. Como otimizar o financiamento da APS do setor público?

Da perspectiva do financiamento, incentivos contraditórios postos aos prestadores e gestores – decorrentes da multiplicidade de fontes de financiamento e da utilização de critérios per capita e por produção – podem estar contribuindo para desestimular a efetividade dos serviços. Uma parte importante do financiamento da APS é assumida pelo próprio município, enquanto a outra é de responsabilidade, sobretudo, do governo federal. O município é obrigado por lei a gastar pelo menos 15% da sua arrecadação em saúde sendo que municípios pequenos, que contam apenas com rede de APS, chegam a gastar mais de 30% da sua arrecadação própria com saúde (Machado et al. 2020). Já as transferências federais são realizadas mediante repasses automáticos calculados pelo número de habitantes. Os serviços de média e alta complexidade são oferecidos pelos municípios maiores e, por vezes, também pelo Estado, através de prestadores que recebem essencialmente pelo número de procedimentos que realizam. Estes serviços são financiados com recursos do próprio município e por transferências do Estado e do governo federal. Especialmente no caso dos municípios menores, esta combinação de financiamento praticamente automático de parte importante da APS e de demandas mais complexas sendo atendidas fora do município – quase sem gastos adicionais para o município de origem e com ganhos adicionais para o prestador de serviços –, pode estar contribuindo para que os gestores municipais e os prestadores de serviços mais complexos prestem pouca atenção à qualidade e resolutividade da APS.

A tarefa de identificar incentivos que ajudem a fomentar a colaboração e o interesse no bom desempenho dos parceiros poderá ser facilitada a partir de uma gestão mais integrada e verticalizada dos serviços de APS e MAC. Mudanças nesta direção poderão representar um passo importante para a promoção e a resolutividade dos serviços, e o uso mais eficiente dos recursos (Coelho et al 2020).

6. Como usar a tecnologia para promover inclusão e redução de desigualdades em saúde?

Por todo o país pipocam experiências de organização de redes que conectam generalistas a especialistas e contribuem para o acolhimento e tratamento efetivo dos cidadãos, diminuindo as hospitalizações e ajudando a manter a continuidade dos cuidados, em especial dos pacientes com doenças crônicas. A novidade é a possibilidade trazida pela informatização e pela telessaúde, de se promover um movimento amplo, coordenado e efetivo de fortalecimento e integração das redes de APS e de MAC que já existem e estão capilarizadas por todo o país (SindHosp e Cebrap 2022).

Da perspectiva da informatização, trata-se de aprofundar a capacidade de coleta e análise de dados para avaliação de desempenho do sistema de saúde ampliando o conhecimento, tanto sobre a saúde da população, quanto acerca de indicadores que contribuam para aperfeiçoar a gestão. Da perspectiva da assistência, pode-se ampliar a oferta de teleconsultas e teleserviços aos moradores de regiões onde há carências de médicos da APS, reforçando a presença, mesmo que virtual, de médicos de saúde da família nas UBSs, assim como a capacitação dos profissionais de saúde e a cooperação multiprofissional. A saúde digital também amplia a possibilidade de envolvimento e a capacitação das famílias e o estabelecimento de redes sociais de informação, discussão e socialização como, por exemplo, grupos de WhatsApp envolvendo linhas de cuidado entre pacientes, familiares, generalistas e especialistas (SindHosp e Cebrap 2022). Investir na digitalização da APS representará uma oportunidade de trabalhar pela redução de desigualdades e enfrentar a tendência atual, na qual os serviços que atendem os que vivem nas áreas ricas das grandes cidades avançam na digitalização, enquanto os serviços públicos de baixa complexidade que atendem as populações mais vulneráveis ficam para trás.

BIBLIOGRAFIA

Andrade MV; Noronha K; Barbosa ACQ; Rocha TAH; Silva NC; Calazans JÁ; Souza MN; Carvalho LR e Souza A (2015). A equidade na cobertura da Estratégia Saúde da Família em Minas Gerais, Brasil. Cad. Saúde Pública 31 (6); Jun

Machado JÁ; Gonçalvez GQ e Araújo CEL (2020). Muito além do piso: por que municípios brasileiros sobre alocam receitas próprias com saúde? Paper apresentado na 12º Conferência da ABCP

Bousquat A; Giovanella L; Facchini LA; Mendonça MHM; Cury GC e Nedel F (2021). Desafios da Atenção Básica no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no SUS- 2021. Relatório de Pesquisa. Rio de Janeiro: Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde da Abrasco.

Coelho VSP; Marcondes LM e Barbosa M (2019). “Accountability” e redução das Desigualdades em Saúde: A experiência de São Paulo. Novos Estudos CEBRAP, v. 38, No.2 pp: 323-349

Coelho VSP e Dias M. (2018). Health and Inequalities. In: M Arretche. Paths of Inequality in Brazil. Springer pp: 183-205

Coelho VSP; Costa MIS; Schalch L (2020). Arranjos Contratuais e Regionalização Da Saúde No Estado de São Paulo. In: N Ibañez, ALViana, R Tardelli, and FL Iozzi. (orgs) Estratégias para a Saúde em São Paulo. São Paulo: Ed. Manole, pp: 271–94

Hone, Thomas, et al. (2017). Association between expansion of primary healthcare and racial inequalities in mortality amenable to primary care in Brazil: A national longitudinal analysis. In: PLoS Med 14(5).

Mello GA et al (2020). A atenção (muito) primária em saúde entre os desafios da organização regional das redes assistenciais em saúde. In: N Ibañez, ALViana, R Tardelli, and FL Iozzi (orgs) Estratégias para a Saúde em São Paulo. São Paulo: Ed. Manole; pp: 98 – 130.

Mendes A; Carnut L; Guerra LDS (2018). Primary Health Care Federal Funding in the Unified Health System: Old and New Dilemmas. Saúde em Debate 42(spe1): pp:224–43

Ministério da Saúde (2020). Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).

Ministério da Saúde (2008). Saúde da Família no Brasil – Uma análise de indicadores selecionados 1998-2006. Brasília: Ministério da Saúde.

Shi L (2012), The Impact of Primary Care: A Focused Review. Baltimore

SindHosp e Cebrap (2022). Proposta Saúde São Paulo 2022, Rumo ao Acesso Sustentável. SindHosp: SP

Matéria originalmente publicada no Jornal Nexo, no endereço abaixo:

https://pp.nexojornal.com.br/perguntas-que-a-ciencia-ja-respondeu/2022/A-Aten%C3%A7%C3%A3o-Prim%C3%A1ria-do-Sistema-%C3%9Anico-de-Sa%C3%BAde-em-6-pontos

Por Vera Schattan P. Coelho

Vera Schattan P. Coelho é doutora em ciências sociais, foi pesquisadora visitante no IDS/UK (Institute of Development Studies) e na Kennedy School. Coordena o Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento); é pesquisadora associada ao CEM (Centro de Estudos da Metrópole) e leciona no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFABC. Suas áreas de pesquisa são: sistemas de saúde, desigualdades em saúde, política de saúde e participação cidadã em políticas públicas

07 Set 2022 (atualizado 23 set 2022 às 18h32)

Por

Autoria Externa
São artigos sobre a APS publicados em outros meios de comunicação.

Compartilhe

Você tem uma sugestão de pauta, material, artigo de opinião ou eventos para divulgarmos?

Envie para: