A capitação ponderada veio para ficar?  – Atenção Primária à Saúde no SUS

A capitação ponderada veio para ficar? 

A capitação ponderada mudou a forma da alocação do incentivo federal para os municípios implantarem e manterem as equipes da estratégia saúde da família e as ações gerais para na atenção primária municipal em todo o Brasil. Por cerca de 25 anos, os principais mecanismos utilizados foram o contingente populacional de cada municipalidade (Piso de Atenção Básica Fixo) e o incentivo a implantação de programas considerados prioritários pela Política Nacional de Atenção Básica (Piso de Atenção Básica Variável). O modelo de capitação ponderada, implantado no país, a partir de 2020 é utilizado em vários países europeus e compõe o leque de opções de financiamento da APS.  

No entanto, cumpre destacar que a adoção de um modelo de capitação ponderada é complexa, pois as diferenças nas necessidades de saúde costumam ir para além dos fatores tradicionalmente selecionados, sendo afetadas, sobretudo, por elementos de morbidade, mortalidade e aspectos socioeconômicos presentes nas diferentes realidades.

Diante da experiência que vem sendo implementada, quais são as principais implicações organizacionais, técnicas e políticas que a implantação desse modelo está gerando na atenção primária no Brasil? 

Antes de detalharmos as mudanças e as consequências, e por fim as possíveis alternativas para reformá-lo, descrevemos abaixo os seis componentes principais do modelo de alocação de recursos para a APS historicamente vigente, considerando componentes com certa homogeneização na forma de repasse:    

1. Componente demográfico ou per capita ou orçamentação

2. Componente serviços ou programas e estratégias

3. Componente provimento de profissionais

4. Componente pagamento por desempenho ou remuneração variável

5. Componente investimento/capital em obras, equipamentos etc.

6. Componente “parlamentar” proveniente das emendas parlamentares 

A implantação da capitação ponderada não ocorreu a partir de recursos novos para a APS. A mudança foi viabilizada com a agregação dos recursos já existentes no orçamento e com repasses regulares aos municípios. Foram agrupados os *5,1 bilhões de reais do componente demográfico (PAB fixo), o *3,7 bilhões do recurso da estratégia das equipes de saúde da família (ESF), o *1,1 bilhões dos núcleos de apoio à saúde da família (NASF) e ainda com o recurso previsto para incentivo a implantação do gerente de UBS, em torno de *192 milhões. 

*Obs. São valores aproximados do ano de 2019/2020. O desenho detalhado do programa pode ser encontrado nos artigos do Harzheim (2020) e Mendes (2020). Mas é importante reforçar que, em essência, foi esse o arranjo orçamentário. 

Aqui cabe uma consideração, existe ainda o incentivo com base populacional como forma de compensar os desequilíbrios de repasse do Previne, e não como método de alocação. De acordo com dados do repasse financeiro de outubro/22 o incentivo com base em critério populacional (componente demográfico) corresponde atualmente a apenas 105 milhões/mês de transferências aos municípios, ou seja, não pode ser comparado ao PAB fixo enquanto conceito ou valores. 

Alguns resultados após os 4 anos de vigência desse modelo 

a) Queda na cobertura de ESF (40h) com equipe completa

A cobertura das equipes da estratégia saúde da família (ESF) está em queda relativa à população pela primeira vez em toda sua história. Em dezembro de 2018 o Brasil possuía 42.975 ESF funcionando e recebendo incentivo federal porque atendiam dois critérios principais do regramento federal que exigia: a) equipe completa com todos os profissionais da equipe mínima (médico(a), enfermeiro(a), técnico(a) de enfermagem e agente comunitário de saúde, b) atuando com carga horária de 40 horas semanais e c) envio regular da produção por meio do sistema de informação vigente. Ao considerarmos a competência de outubro de 2022, temos 43.654 ESF completas. Apesar do aparente aumento em números absolutos, é importante considerar que, nesse período de quatro anos, ocorreu crescimento demográfico, portanto, o número estimado de famílias acompanhadas por ESF completas diminuiu. O percentual relativo de população coberta pela APS no Brasil vêm diminuindo, sistematicamente, desde a implantação do novo modelo de financiamento. Após um “apagão” de mais de um ano, o Ministério da Saúde passou a divulgar, a partir de 2021, um novo formato de se medir as coberturas populacionais, inviabilizando a comparação histórica da evolução do mais importante indicador utilizado para o acompanhamento da evolução da atenção básica no país. 

b) A expansão das equipes ocorreu pelas novas modalidades – incompleta e parcial 

As equipes de saúde da família incompletas (sem algum profissional da equipe mínima  em aproximadamente 86% dos casos é sem o profissional médico) já totalizam 3.834 ESF. Além disso, as equipes com funcionamento parcial, que são equipes de 20h e 30h semanais, e apenas com médico e enfermeiro, correspondem a 3.733 equipes. Atualmente, essas equipes incompletas e de funcionamento em horário parcial já correspondem a 15% do total de equipes. 

c) Aumento de pessoas cadastradas na base do SISAB  

Na base de dados da APS temos atualmente 163.450.632 de cadastros (ago/2022), ter uma base robusta de cadastro é importante, mas precisamos lembrar que cadastro não implica em pessoa acompanhada, muito menos em acesso e qualidade do atendimento. Ao compararmos a quantidade de consultas em 2019 com as consultas realizadas até outubro de 2022 temos 13% de aumento ao passo que o cadastro nesse mesmo período teve um salto em torno de 60%.Cadastrar excesso de pessoas por equipe (4 mil) e cadastrar em equipes incompletas e sem apoio da equipe NASF gera menos cuidado e mais insatisfação da população. Adicionalmente, é importante destacar que a periodicidade da atualização cadastral, realizada pelas equipes, impõe desafios para a qualificação dessas informações. No início da implantação do novo modelo de financiamento, houve um movimento de priorização da atualização cadastral, mas, desde então, a atualização dos cadastros não tem se dado de maneira periódica e sistemática na maior parte das realidades. 

Quais seriam os problemas decorrentes desse modelo? 

1) Cadastro excessivo por ESF 

Para 74% das ESF a meta é cadastrar 4 mil pessoas por equipe. Esse parâmetro do programa Previne Brasil cria dois problemas: o primeiro é a sobrecarga de trabalho da ESF que acarreta baixa qualidade nos serviços de APS, e o segundo é o país apresentar uma cobertura artificial da ESF, com muitos cadastros e pouco acesso de fato e ainda menos qualidade e resolutividade. Comparativamente, países com contextos de desenvolvimento socioeconômico muito melhores do que o Brasil possuem critérios que restringem o número de usuários vinculados a cada equipe a não mais do que 2.000 usuários (Ex.: Inglaterra – 1.800 usuários; Portugal – 1.600 usuários) 

2) Cobertura que não cobre ou cobre pouco 

A expansão da cobertura se deu por aumento de equipes parciais com médicos(as) e enfermeiros(as) de 20h e 30h (3.733 equipes EAP) e equipes de ESF incompletas (3.834 ESF-Incomp) com ausência de médicos (86,15% dos casos) e outros profissionais na equipe mínima. 

3) Serviço de APS menos abrangente

Com o fim do financiamento dos NASF e com a expansão concentrada em equipes incompletas ou com carga horária reduzida, aumentou a restrição da oferta de cuidado realizada por essas equipes. Os problemas enfrentados na APS são diversos e necessariamente precisam de uma abordagem multidisciplinar e uma agenda abrangente, com equipes que criam vínculos e promovem o cuidado continuado das pessoas e famílias. 

4) Quem mais precisa, fica sem atendimento

As equipes incompletas (na sua grande maioria sem médicos) tendencialmente estão localizadas em municípios ou nos bairros de maior dificuldade de provimento de profissionais, justo onde são necessários mais atendimentos e equipes completas. 

5) Esse modelo induz a focalização?

Com o fim do PAB fixo (repasse que considerada toda população do município), segundo Massuda (2020), o “financiamento da APS no país deixa de ser universal e passa a ser restrito a população cadastrada pelos municípios, ao se adotar a capitação como critério para financiamento da APS no SUS, em substituição ao financiamento per-capita, cria-se um condicionante que antes não existia para o repasse de recursos para APS, com consequências diretas e indiretas para o sistema de saúde”. Adicionalmente, ainda que não implantado por completo, o modelo de pagamento por desempenho reforça uma APS mais restrita ao concentrar em sete indicadores o repasse de recursos financeiros. 

6) É um modelo que induz a privatização da APS? 

As  bases que orientam o novo modelo estão no relatório do Banco Mundial de 2017, Um Ajuste Justo refere-se à seguinte ideia: “sendo mais eficiente, o Brasil poderia oferecer mais serviços no nível de atenção primária”. No período subsequente, essa ideia é ainda reforçada com o novo relatório do Banco Mundial de 2019, intitulado Proposta de Reformas do Sistema Único de Saúde Brasileiro. 

Ainda segundo Áquilas Mendes (2022) “o número de pessoas cadastradas a ser coberto pelas unidades de saúde, constituindo instrumentos necessários para o estabelecimento de contratos com qualquer prestador, seja público ou, especialmente, privado, como prefere a proposta desse governo”, esse autor também cita que a criação da ADAPS e outras ações dão forma a proposta privatizante da APS. 

O que fazer? Manter o modelo? Como superá-lo? 

Considerando todos os problemas aqui apontados, entendemos que o caminho é a revogação do atual modelo, porém com duas premissas fundamentais, a primeira diz respeito à necessidade de aumento no financiamento global para APS e a segunda que os ajustes busquem superar o modelo atual e o anterior de alocação de recursos federais na APS. 

Algumas considerações preliminares que impactarão no desenho do financiamento:

a) A capitação ponderada representa hoje 11,6 bilhões do financiamento federal, aproximadamente. Se excluirmos dessa conta o provimento de médicos/as e o repasse aos ACS que tem “vinculação obrigatória”, a capitação ponderada representa em torno de 64% do orçamento total, tornando assim qualquer ajuste mais complexo. 

b) A média do repasse mensal por equipe da estratégia de saúde da família é de aproximadamente 16 mil reais. 

c) Como retomar o repasse per capita (componente demográfico) se esse recurso novo seria alocado nos municípios em melhores condições econômicas, pois são as grandes cidades que não tem alta cobertura de ESF. 

d)  O governo eleito pretende implantar novamente as equipes do NASF, para atingir níveis semelhantes de cobertura do período entre 2019/2020 seriam aproximadamente 1,5 bilhões de reais. 

e) O governo federal eleito tem o compromisso de apoiar os municípios no pagamento do piso da enfermagem.  

f) Há uma profusão de regramentos que foram utilizados para contornar os problemas inerentes do modelo de financiamento que agora devem ser revistos, porém em cada um deles há vinculação de recursos que devem ser redirecionados. 

Propostas para discussão:

a) Adotar o modelo de financiamento misto que articule todos os componentes abaixo, porém com proporcionalidade que busque expansão do modelo saúde da família universal e com qualidade no cuidado. 

I – Critério demográfico – retomada do PAB fixo com critério equitativo robusto.

II – Incentivo à implantação e manutenção das equipes da estratégia de saúde da família.

III – Incentivo a programas estratégicos como: consultório na rua, equipes ribeirinhas, saúde bucal, Nasf, informatização, UBS Fluviais, gestão de serviços, etc. 

IV – Recursos para provimento de profissionais – Mais Médicos, ACES e profissionais de enfermagem (piso da enfermagem). 

V – Repasses vinculados ao desempenho com monitoramento de indicadores e indução da organização dos serviços voltada ao fortalecimento do modelo da ESF. 

VI – Utilizar os recursos de emendas parlamentares com total transparência e com definição técnica considerando as necessidades locais em APS. 

VII – Repasses conjuntos entre APS e Atenção especializada para viabilizar o cuidado em rede regionalizada de serviços e cuidados em saúde. 

b) Criar um fórum nacional para buscar alternativas e consolidar um certo consenso sobre as mudanças. Um dos desafios neste sentido é viabilizar o retorno do critério demográfico (APS universal) e  o financiamento adequado da estratégia de saúde da família e dos programas que de forma concomitante impactam na oferta de serviços das ESF. 

c) Transformar parte significativa das 7.567 “equipes previne” em equipes da estratégia de saúde da família. Orçamento estimado anual (sem correção pela inflação) esse cálculo leva em conta que 50% do valor das equipes já está previsto no orçamento de 2023. 2023: R$ 382.133.651,34 / 2024: R$ 1.528.534.605,36 / 2025: R$ 1.528.534.605,36 / 2026: R$ 1.528.534.605,36. 

d) Retomar e expandir o programa mais médicos e ampliar a discussão para o provimento da equipe multiprofissional,  a fim de levar assistência médica/saúde/APS a todos os lugares do país, especialmente para os mais vulneráveis que, na sua maioria, vivem em áreas periféricas das grandes cidades, em municípios menores localizados nas regiões norte e nordeste, e em áreas remotas e isoladas. Incluir no programa estratégias que valorizem a APS socialmente, envolvendo ações que conectem os profissionais às comunidades.

e) Aumentar o número de novas ESF implantadas por ano, pois historicamente são implantadas em média 1.600 ESF/ano, número insuficiente para aumentar a cobertura de forma adequada. Hoje o valor médio para uma ESF é de R$16.833,34. Orçamento estimado anual para implantar 2.000 novas ESF ano até 2026 (sem correção pela inflação) 2023: R$ 202.000.080,00 / 2024: R$ 606.000.240,00 / 2025: R$ 808.000.320,00 / 2026: R$ 1.414.000.560,00. 

f) Transformar o modo como se entende a Cobertura de APS no Brasil para uma melhor compreensão das necessidades da população, dirigindo o planejamento das ações e a alocação de orçamento, a partir da conversão da lógica de se considerar a oferta como definidora dos critérios de cobertura para a demanda dos usuários, com a inclusão de características demográficas, socioeconômicas e epidemiológicas da população coberta, dado que esses elementos operam como fatores de constrangimento para a qualidade da oferta.

Referências 

Massuda, Adriano. Mudanças no financiamento da Atenção Primária à Saúde no Sistema de Saúde Brasileiro: avanço ou retrocesso? Ciência & Saúde Coletiva, 25(4):1181-1188, 2020

Harzheim, Erno et. al. – Novo financiamento para uma nova Atenção Primária à Saúde no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva vol.25 no.4 Rio de Janeiro Apr. 2020  Epub Apr 06, 2020

De Seta, M. H.; Ocké-Reis, C.O.; Ramos, A.L.P. Programa Previne Brasil: o ápice das ameaças à Atenção Primária à Saúde? Ciênc. Saúde Coletiva 26 (suppl 2) 30 Ago 2021.

Melo, Eduardo et al. Reflexões sobre as mudanças no modelo de financiamento federal da Atenção Básica à Saúde no Brasil. Saúde em Debate. RJ. V. 43, N. Especial 5, P. 137-144, DEZ 201

Morosini, Marcia et. al. Previne Brasil, Agência de Desenvolvimento da Atenção Primária e Carteira de Serviços: radicalização da política de privatização da atenção básica? Cad. Saúde Pública 2020

The Lancet Global Health Commision on Financing Primary Health Care – https://www.lshtm.ac.uk/research/centres-projects-groups/commission-financing-phc#updates

 Peacock S, Segal L. Capitation funding in Australia: imperatives and impediments. Health Care Manag Sci. 2000 Feb;3(2):77-88. doi: 10.1023/a:1019037206624. PMID: 10780276.

Mendes, Áquilas et. al. – Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos.Cadernos de Saúde Pública. ISSN 1678-4464. 38 nº.2. Rio de Janeiro, Fevereiro 2022

Banco Mundial. Um ajuste justo: análise da eficiência e equidade do gasto público no Brasil. http://documents.worldbank.org/curated/en/884871511196609355/pdf/121480-REVISED-PORTUGUESE-Brazil-Public-Expenditure-Review-Overview-Portuguese-Final-revised.pdf (acessado em 02/Set/2019).

Banco Mundial. Propostas de reformas do Sistema Único de Saúde brasileiro. http://pubdocs.worldbank.org/en/545231536093524589/Propostas-de-Reformas-doSUS.pdf (acessado em 02/Set/2019

Paineis de Indicadores da Atenção Primária à Saúde, disponível em https://sisaps.saude.gov.br/painelsaps/producao_pub

e-Gestor Atenção Básica: Informação e gestão da Atenção Básica. Relatório de Financiamento. Disponível em https://egestorab.saude.gov.br/paginas/acessoPublico/relatorios/relPagamentoIndex.xhtml

SISAB: Sistema de Informação em Saúde para a Atenção Básica. Disponível em https://sisab.saude.gov.br/

Publicado em 21 de nov de 2022.

Autores/as:

Dirceu Klitzke – Sanitarista

Olivia Medeiros – Especialista em Saúde da Família. Mestre em Saúde Coletiva

Allan Sousa – Doutor em Saúde Coletiva

Aliadne Sousa – Mestre em Saúde Coletiva

Por

Dirceu Klitzke
Sanitarista

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