Nova política do governo federal pode exacerbar desigualdades ao penalizar municípios com menor infraestrutura.
Na semana que celebra o Dia Mundial da Saúde, em 7 de abril, a revista Lancet Global Health publicou uma pesquisa que analisou modelos de financiamento da Atenção Primária em Saúde (APS) em sistemas de saúde no mundo.
Realizado em meio à pandemia da Covid-19, o estudo reuniu 22 especialistas de 15 países para investigar como arranjos de financiamento podem fortalecer a APS em países de baixa e média renda. A exitosa experiência brasileira de financiamento da Estratégia Saúde da Família (ESF), que atualmente encontra-se numa encruzilhada, fez parte do estudo.
Em 1978, a Assembleia Mundial de Saúde realizada na cidade de Alma-Ata, no Cazaquistão, definiu a Atenção Primária em Saúde como a melhor estratégia para levar “Saúde para Todos” no mundo até o ano 2000. A partir de uma abordagem centrada na comunidade, as equipes que atuam na APS buscam atender ao conjunto das necessidades de saúde apresentadas pelas pessoas ao longo de sua vida, incluindo o bem-estar físico, mental e social.
Diversos estudos demostram que países com sistemas de saúde organizados com base na Atenção Primária em Saúde têm populações com melhor situação de saúde, há mais equidade nos resultados em saúde e estão em melhor posição para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável traçados pela ONU.
Porém, na maioria dos países de baixa e média renda, a APS ainda é subdesenvolvida, sub-financiada e encontra dificuldade para dispor de força de trabalho qualificada. Como resultado, metade da população mundial não tem acesso a serviços essenciais de saúde e encontra-se em situação de maior vulnerabilidade frente a emergências sanitárias.
Para reverter esse quadro, estudo da Lancet afirma que é crucial aportar maior volume de recursos públicos para Atenção Primária e aprimorar os mecanismos de financiamento da APS nos sistemas de saúde para trazer as pessoas para o centro da atenção.
Apesar das desigualdades socioeconômicas e dos problemas estruturais do SUS – entre os quais o baixo financiamento público, a frágil governança regional e a ineficiência na alocação de recursos disponíveis –, construímos no Brasil um modelo de APS que é reconhecido internacionalmente pelo caráter inovador e pelos resultados alcançados.
A APS brasileira foi desenvolvida para ser a base do Sistema Único de Saúde, o SUS, alicerçada nos princípios da universalidade, integralidade, descentralização e participação da comunidade. Em contraste com a maioria dos países de baixa e média renda, que tem programas focais e seletivos de APS – dirigidos para um grupo específico de doenças nas populações mais pobres – e de países de alta renda, que tem modelos centrados no trabalho médico, a Estratégia Saúde da Família inovou ao estabelecer equipes multiprofissionais que oferecem uma ampla gama de ações clínicas e de saúde coletiva para a população residente em área geográfica definida.
Diversos estudos mostraram que a presença das equipes de ESF nas comunidades está associada a melhorias nos resultados e na equidade em saúde. Implementado a partir de 1998, o Piso de Atenção Básica (PAB) foi o pilar de sustentação da expansão dessa estratégia.
O PAB foi primeira fonte de financiamento federal a contemplar todos os municípios com recursos específicos para Atenção Primária. Composto por dois componentes – um fixo, de base populacional, canalizado mensalmente para as prefeituras com a finalidade exclusiva de subsidiar a prestação de serviços de APS, e outro variável, destinado a estimular os municípios a adotarem programas prioritários para APS –, o Piso de Atenção Básica possibilitou a manutenção do gasto regular pelos municípios na APS. Isso garantiu a resiliência da Atenção Primária mesmo diante de oscilações nas políticas locais.
Ao contemplar cidades menores e nas regiões mais pobres, que antes não tinham infraestrutura de saúde para prestar serviços e receber financiamento federal, o PAB fixo contribuiu para redução das inequidades em saúde no país. O componente variável, por sua vez, teve papel decisivo para induzir a adoção da ESF com financiamento atrelado ao número de equipes implantadas.
Entretanto, apesar dos resultados positivos alcançados pela Estratégia Saúde da Família, a APS brasileira apresenta importantes desafios que derivam de problemas estruturais do SUS, que vêm se agravando diante da crise política e econômica vivida no Brasil.
Embora as transferências federais tenham sido decisivas para expansão da ESF, foram os municípios que assumiram a maior carga do financiamento da APS. Como o financiamento municipal está associado às suas próprias receitas, as prefeituras passaram a arcar com despesas para manter os serviços de APS em condições bastante desiguais – como na contratação de profissionais médicos –, perpetuando inequidades na alocação de recursos.
Em resposta à recessão econômica, em 2016 o Congresso Nacional aprovou o congelamento de gastos federais – reajustado apenas pela inflação – por 20 anos. Estudos projetaram que essas medidas iriam enfraquecer o SUS e a APS, com maior deterioração dos resultados em saúde sobre municípios menores e mais dependentes de transferências federais, exacerbando as desigualdades em saúde no país.
As evidências de enfraquecimento da Atenção Primária em Saúde no Brasil são preocupantes. Apesar da cobertura de ESF seguir estável (63,3% em 2021), a última Pesquisa Nacional de Saúde (PNS 2019) mostrou uma queda abrupta no percentual da população que refere ter o posto ou centro de saúde como serviço de uso regular: de 53,7% para 35,9% entre 2013 e 2019.
Essa tendência é confirmada pela redução do número de procedimentos realizados em Unidades Básicas de Saúde, que tem início no ano de 2016, se acentua a partir de 2018 e piora ainda mais durante a pandemia. A perigosa redução da cobertura vacinal é resultado direto disso.
No contexto de austeridade fiscal, em 2019 o governo federal lançou uma nova política de financiamento para a Atenção Primária no SUS. Chamada de Previne Brasil, a política substituiu o mecanismo do Piso de Atenção Básica por uma combinação de captação ponderada, pagamento por desempenho e incentivos a ações prioritárias como base cálculo de recursos federais para municípios. Devido à Covid-19, sua implementação foi iniciada apenas em 2022.
O estudo da Lancet afirma que a captação deve ser a pedra angular da remuneração de equipes de APS por vincular as pessoas às equipes e que o pagamento por desempenho deve ser utilizado para incentivar as equipes melhorar os resultados na saúde da população sob sua responsabilidade. No Previne Brasil, entretanto, esses instrumentos não estão sendo utilizados para remunerar equipes, mas para calcular o volume de transferências que o governo federal repassa para os municípios.
Desse modo, esses instrumentos podem exacerbar desigualdades ao penalizar municípios com menor capacidade gerencial, infraestrutura, recursos humanos e tecnológicos. Ao considerar apenas pessoas cadastradas e não população total – num país com 25% da população com planos privados –, o instrumento limita a universalidade e aumenta a fragmentação da APS. Ao considerar um grupo limitado de indicadores, o pagamento por desempenho estabelecido pelo Previne Brasil induz a seletividade da Atenção Primária. Efeitos opostos aos produzidos pelo PAB.
O aumento do financiamento federal para APS é decisivo para fortalecer a Estratégia Saúde da Família no país. Os instrumentos estabelecidos pelo Previne Brasil poderiam ser valiosos para aprimorar a eficiência do gasto na Atenção Primária se fossem adicionados ao esquema bem-sucedido do PAB e dirigidos diretamente ao aumento da remuneração das equipes prestadoras de serviços de APS, a exemplo de como é feito em países da OCDE.
O complexo cenário sanitário sob impacto da Covid-19 requer esforços coordenados entre as três esferas de governo para fortalecer a APS no SUS. O primeiro passo deve ser resgatar a concepção de uma Atenção Primária em Saúde universal, integral e base estruturante do SUS. Os arranjos de financiamento devem ser aprimorados para tornar os serviços de APS cada vez mais acessíveis, resolutivos e integrados aos demais níveis de um sistema de saúde resiliente.
ADRIANO MASSUDA – Professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV) e membro do FGV Saúde. Graduado em medicina pela UFPR, na Unicamp fez residências em Medicina Preventiva e Social e em Administração em Saúde, mestrado e doutorado em Saúde Coletiva na área de Política, Planejamento e Gestão em Saúde. Foi médico em Unidade Básica de Saúde em Campinas e no Hospital de Clínicas da Unicamp. Foi secretário municipal de Saúde (2013-2015) em Curitiba. No Ministério da Saúde, foi secretário-executivo substituto (2011-2012) e secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos (2015)
Por Adriano Massuda Publicado: site jota.info em 05/04/2022